2. Se meu apartamento falasse (Billy Wilder, 1960)

2/10 Filmes de amor
Por Beatriz Macruz

Pra mim parece muito difícil, e ao mesmo tempo inevitável, falar do Billy Wilder por aqui. É um dos meus diretores favoritos e mais queridos, não a toa o letreiro do filme “Beije-me, idiota” estampa este blog. Ao mesmo tempo, é autor de uma obra gigante, e quase sempre sensacional, e sobre a qual tanta gente já se debruçou.

Outra coisa, é que ele tinha um olhar invariavelmente sombrio sobre o mundo. Filmes como “Crepúsculo dos deuses” e “A montanha dos sete abutres” são exemplos em que esse olhar é abertamente sombrio. Mas o Billy Wilder tinha, e fazia, esse humor maravilhoso também (é responsável pelo filme mais engraçado que existe, “Quanto mais quente melhor”), e também era dono de uma sensibilidade que me emociona, mesmo dentro deste universo sombrio que ele enxergou e construiu em seus roteiros e filmes.

Me parece difícil falar de amor neste universo. Difícil dizer que algum filme dele era, essencialmente, sobre amor. Acho curioso que “Se meu apartamento falasse” frequentemente apareça em listas de grandes comédias românticas, porque, apesar do humor impecável e impagável, é um filme triste pra porra. Mas vamos lá, tentar refletir justamente sobre essa contradição. Em todo caso, acho que a sensibilidade do Billy Wilder está mais apurada do que nunca em “Se meu apartamento falasse”.

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O preto-branco poucas vezes fez tanto sentido no cinema, porque a vida dos personagens no filme, de fato, é quase o tempo todo cinzenta e melancólica.

É interessante também que, no mundo do Billy Wilder, o maniqueísmo se dissolve nessa larga escala de cinzas: num mundo preto no branco, a moral de todos os personagens seria no mínimo duvidosa, mas jamais que haveria espaço para tamanha empatia, que os personagens conseguem arrancar do público como mágica. Como sempre, é de nós mesmos e das nossas pequenas tragédias que Billy Wilder nos faz rir.

apartment office

Jack Lemmon é o protagonista C.C. Baxter, um funcionário padrão exemplar de uma enorme empresa de seguros de Wall Street, que não mede esforços ou escrúpulos na tentativa de conseguir uma promoção. Ele chega ao ponto de emprestar seu próprio apartamento, que fica próximo ao escritório, para que seus chefes e superiores tenham aonde levar as amantes após o expediente.

As sequências em que Baxter caminha pelas noites frias de Manhattan, enquanto aguarda que os encontros amorosos regados a conhaque e música alta se acabem, para que sua própria casa esteja disponível para ele, são algumas das mais bem construídas do filme.

E o Billy Wilder não tem dó de ninguém: a espera de Baxter só revela o quanto é vazia e solitária a sua vida. Contrastada com o abuso e a folga dos executivos da empresa em seu apartamento, causa até mesmo constrangimento no espectador. Mas é impossível não rir das trapalhadas de Baxter tentando voltar para casa sem ser visto pelos vizinhos ou pelos “convidados” já de saída; ou da revolta dos vizinhos moralistas e fofoqueiros, que reclamam da música alta e das mulheres que ele “leva” todas as noites para casa, e que acrescentam mais uma camada (de cinza e de comicidade) nessa escala moral sem cores construída por Wilder. Afinal de contas, é claro que a reputação dos executivos tem de ser preservada, então é Baxter quem leva a culpa pela bagunça no condomínio.

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Se a mesquinhez dos executivos está em manter uma vida respeitável e bem sucedida somente nas aparências, a de Baxter está em almejar para si mesmo essa mesma vida. Por um lado “Se meu apartamento falasse” funciona como um retrato do engodo que as instituições do casamento, de Wall Street, e o desejo da ascensão social representam na sociedade americana; mas a Srta. Fran Kubelik (a linda, estupenda, Shirley Maclaine) surge de dentro de um elevador da empresa em que Baxter trabalha, numa manhã como todas as outras, pra provar que o filme não serve somente a este propósito.

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Aqui é preciso fazer uma pequena reflexão sobre gênero nas comédias românticas do Billy Wilder: a mulher não ocupa um lugar de ingenuidade e passividade (diante até mesmo do amor). Sujeitos ativas do universo amoral de Wilder, com o mesmo poder de escolha, guiadas por suas vontades e desejos tão particulares, como os dos homens, as mulheres do cinema do Billy Wilder talvez merecessem um top 10 só para elas.

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Voltando, a Srta. Kubelik surge de dentro do elevador porque é ascensorista na empresa de seguros em que Baxter trabalha. Espirituosa pra caramba, é uma das personagens cinematográficas mais adoráveis que já conheci. De início, o flerte entre ela e Baxter flutuava entre uma simples amizade e o platonismo; mas ele logo se dá conta do quanto realmente se sente atraído, justamente, pela doçura genuína da Srta. Kubelik.

Isso só torna mais triste a cena em que ele descobre que a Srta. Kubelik é uma das frequentadoras de seu apartamento – em meio a mais uma antológica sequência, de uma festa da firma que mais parece um bacanal. Ele não será o único a se confrontar com uma verdade dura na festa, mas nunca um gesto corriqueiro e banal como o de se olhar num espelho portátil teve uma carga dramática tão precisa e triste. Três planos, duas falas, e pronto: Baxter mira o espelho emprestado pela Srta. Kubelik e entende tudo.

Como num filme de Howard Hawks, como bem observou o crítico Inácio Araújo, a trama de “Se meu apartamento falasse” é conduzida por estes pequenos objetos e gestos dos quais derivam as pequenas tragédias, os risos e, é, talvez, o amor – que serve para acrescentar algum contraste no cinza, e que no caso do Baxter, dá novo sentido para suas ações e decisões.

O amor é essa possibilidade quase ilusória, como tudo a volta dos personagens de “Se meu apartamento falasse”; mas que ganha verdade e poesia através destes gestos, de um diálogo afiado, ou de uma flor branca encaixada no paletó. São eles que abrem para o espectador o universo sombrio mas impressionante dos seres vivos do Billy Wilder. Impressionante, sim, porque este universo é nada mais do que um recorte preciso do nosso.

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